Quando a política [a]condimenta as iguarias: Avillez no Round Tables
2016 em Telavive.
Há uma velha iguaria mundial que, mais recentemente, tem sido servida
à americana (1). Trata-se de uma iguaria cozinhada pelos estados das
democracias ocidentais, entre elas Israel, tal como foi apresentada no
baile de debutante em 1949 na ONU. A partir desse momento, os
procedimentos da Hell's Kitchen sionista repartiram-se entre escalfar,
cozer, estrugir, refogar, grelhar, assar, saltear, fritar, estufar,
aplicando sistematicamente os requintados ingredientes da colonização:
espoliação, expulsão, assassinatos, detenções administrativas,
racismo, apartheid, discriminação e controlo arbitrário. Sempre com
uma pitada de crueldade.
Perante tal ementa, a sociedade civil de Palestina-Israel criou, em
2005, o Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), um
prato não violento à base de liberdade, igualdade e justiça, de forma
a contrariar o apetite voraz dos governos do estado de Israel e parar
a colonização, desmantelar o muro, conceder igualdade de direitos e
respeitar os direitos dos refugiados. Através de muito trabalho e
persistência, e apesar da extrema (o)pressão, o movimento foi ganhando
força, consistência e visibilidade. Tanto que, em 2011, se iniciou uma
espécie de "guerra legal" para permitir a Israel defender-se
juridicamente no mundo inteiro contra qualquer prejuízo ocasionado
pelo movimento BDS. Entretanto, com as eleições de Março 2015, foi
disponibilizado um orçamento para o ministério dos assuntos
estratégicos, dedicado a "black-ops" contra as acções BDS.
Simultaneamente, toda a estratégia de marketing político direccionada
para orientar a opinião pública [hasbará(2)] a favor da ilustre
debutante foi reforçada. Uma estratégia em que podemos enquadrar o
evento internacional de gastronomia Round Tables, iniciado em 2015, e
que, sem espanto, tem o patrocínio dos ministérios do turismo e dos
negócios estrangeiros israelitas. Para além da American-Express,
ingrediente que realça os sabores até dos repastos mais frugais, o
que, bem vistas as coisas, nem é o caso.
Recentemente, o movimento BDS alertou-nos para a participação de um
chef português no projecto gastronómico Round Tables Tour, evento de
culinária a decorrer em Telavive entre 8 e 26 de Novembro de 2016.
Infelizmente, a acção indirecta alimentada por cartas educadas a
apelar para que Avillez não participasse - cartas divulgadas na
imprensa dos monopólios ou em redes restritas – foi apenas uma entrada
que o Chef rejeitou. E que não nos encheu os olhos, deixando um travo
amargo nos nossos estômagos de poetas, que apenas um copo de acção
directa – essa forma máxima de poesia - mitigará.
Se, como o pôs Brillat-Savarin num aforismo no seu livro intitulado a
Fisiologia do Gosto, "o destino das nações depende da forma como elas
se alimentam", uma população obrigada à fome encara um evento
internacional como um texto publicitário que esconde e branqueia os
negros livros da antiga tragédia. Para esse povo, que outra forma de o
alimentarmos que não esta de enviar, daqui de longe, um poema solidário?
O vermelho que escorre no vidro é o sangue que Avillez avilta com a
sua colaboração culinária. Porque "o destino das nações depende da
forma como elas se alimentam".
A cola que veda a fechadura é a fome provocada que Avillez quer
gourmet. Porque "o destino das nações depende da forma como elas se
alimentam".
As ementas recheadas de realidade são a face visível de que "o destino
das nações depende da forma como elas se alimentam".
Uma poética que se deve saborear para além do paladar literal das
palavras, bastando digeri-la com delicadeza semântica q.b.